sábado, 8 de maio de 2010

DIÁLOGO INTERNO

Marleuza e Mari são amigas muito íntimas. Estão sempre dialogando sobre as mazelas do cotidiano e como se aproxima a data em que Marleuza ficará "mais experiente", a criatura anda muito pensativa, naqueles momentos de reflexão que os astrólogos denominam "inferno astral".

-Ô inferninho cruel! Diz Marleuza.
-Mari pergunta: por que tanto pessimismo Marleuza?
-Sei lá Mari! Acho que a vida não tem sido generosa comigo.
-Preste atenção no que fala Marleuza! Feche os olhos e tente rememorar os anos passados. Consegue perceber o crescimento, as conquistas e vitórias que teve até hoje?

Por alguns instantes, Marleuza distancia o olhar e volta no tempo...

42 anos atrás, numa fazenda onde morava com a família na condição de agregados, no Vale do São Patrício em Goiás. Ela tinha 7 anos. Duas horas de caminhada sob sol escaldante para chegar à escola rural onde cursava a segunda série do ensino, naquele tempo, chamado primário. No mês se setembro, os fazendeiros colocavam fogo nas pastagens à beira da estrada, tornando o clima ainda mais árido e seco, e as cigarras faziam um barulho ensurdecedor com seu canto. Pior foi o dia em que torceu o pé ao correr para chegar primeiro embaixo do pé de pequi e colher os frutos caídos antes da irmã e da colega de escola. Além de ter que continuar o caminho de ida, restava o percurso de retorno no final da tarde, quase pulando num pé só...por mais duas horas!

40 anos atrás, em Ceres - GO. A família se desentendera com o dono da fazenda e voltara à cidade de origem. Em condições paupérrimas! Marleuza, então com 9 anos, carregava trouxas enormes de roupas na cabeça para a mãe lavar, além de ajudar a cuidar dos irmãos mais novos e frequentar a escola, onde ganhava todo o material escolar que não podia comprar, graças ao seu desempenho e boas notas. Era "catarrenta", "piolhenta" e muitas vezes foi alvo das campanhas de saúde e higiene promovidas pela escola, tendo que ficar diante dos coleguinhas de sala, dizendo frases decoradas e tendo também os cabelos lavados na instituição de ensino, após a aplicação de "Neocid", inseticida usado como piretroide naquele tempo...

1972. 11 anos tinha Marleuza, que entra na Capital de Goiás em cima da carroceria de madeira de uma caminhonete "Toyota" de um fazendeiro das redondezas de Ceres, chamado "Tonico Toqueiro". Além de terem implorado à Polícia Rodoviária Estadual para prosseguirem viagem, pois a lei não permitia a condução de pessoas (mais os poucos móveis e um cachorro, claro!) sobre a carroceria, seguiram destino completamente inverso ao planejado, porque o ponto de referência da casa do tio para onde iam em Goiânia, era a torre de transmissão de televisão da Serrinha. O motorista que não conhecia a cidade enxergou primeiro a torre do Morro do Mendanha. Aí dá para imaginar...

1974. Sobrado de um Coronel reformado, esposo de uma famosa escritora goiana. Marleuza era empregada doméstica. 13 anos tinha então. Menina-moça, corpo em desenvolvimento; não passava despercebida. Começava a desabrochar a mulher. Ficava a semana no emprego e só ia para casa no domingo pela manhã, quando revia os familiares, pelos quais chorava de saudades. A mãe era a lavadeira da família, Passava por lá uma vez na semana. O Coronel era cego, mas parecia visualizar a formosura da menina, pela qual abria a carteira, dizendo que ela escolhesse o quanto quisesse para permitir que ele lhe fizesse uma carícia em suas partes íntimas. Um assédio vergonhoso, que a jovem adolescente, por falta do diálogo com a mãe, não tinha coragem de contar e sofria calada, descendo correndo as escadas do sobrado para dele fugir, e mesmo com todas as necessidades pelas quais passava, a menina jamais aceitou qualquer centavo ganho daquela forma condenável para ela. Mesmo que o único calçado que tivesse fosse uma "havaiana" com calcanhar comido pelo uso e com a tira arrebentada presa embaixo por um grampo de cabelos.

-Marleuza, acorda! Onde você está mulher?
-Mari, eu cresci e não percebi! Ainda vive dentro de mim a menina que teve uma infância muito pobre, que sofreu muito para adquirir um pouco de cultura! Ainda chora dentro de mim, a menina humilhada na escola pela carência material extrema! Ainda se amedronta dentro de mim a adolescente que sonhava com o príncipe encantado, onde "coronéis" entravam nos sonhos para obrigá-la despertar. Vive dentro de mim, essa menina-adolescente que ainda ousa sonhar com príncipes e vê seus sonhos destruídos não por “coronéis”, mas por falsas palavras doces e promessas que não se cumprem! Como estar feliz dentro de um mundo que parece não ter sido feito para esta menina-moça que se nega a encarar a vida com a dureza que lhe é própria?
-Marleuza, minha querida, faça de todas as cenas gravadas no seu subconsciente motivos para sorrir hoje! Você é uma vencedora! Pense no quanto é importante na vida de muitas pessoas. Observe à sua volta! Você mora num bairro nobre da Capital; é a casa que conquistou! Deus confiou a você um casal de filhos maravilhosos, inclusive, sua filha passou no vestibular em duas universidades públicas, sendo motivo de muito orgulho! O trabalho não é o que você almeja, mas sei que luta para conseguir progredir. Você caminhou tanto, contudo, olha seu hoje com os olhos da criança e da adolescente que teve os sonhos interrompidos! Você idealiza seus “príncipes” e quando percebe que eles não mais existem, seu castelo desaba! Acorde Marleuza, para que você volte a sonhar, porém, com os pés fincados na realidade! Construa o seu agora, com base nas experiências adquiridas. Você verá que é possível ser feliz. Construa um céu particular dentro de você e assim posso lhe garantir que no próximo ano, quando chegar seu aniversário, o tal "inferno astral" passará longe. Acredite, você pode! Permita que a menina-adolescente se vá e que no lugar dela, surja a mulher que realmente você é. E não precisa perder a pureza nem o olhar sincero com o qual enxerga seus semelhantes. É isso que faz de você uma pessoa especial. Ainda não entendeu?
-Obrigado Mari. Sei que você é minha "amiga gêmea".
-Feliz aniversário Marleuza. Eu estarei sempre "grudada" em você. O seu progresso será o meu. As suas vitórias serão as minhas. Sua felicidade é motivo para eu ser feliz. Já pensou na responsabilidade?


“Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido...” (Ivan Lins)

“As águas vão rolar, não vou chorar
Se por acaso eu morrer do coração
É sinal que amei demais
Mas enquanto estou viva e cheia de graça
Talvez ainda faça (talvez não, certeza! com licença Rita Lee!)
Um monte de gente feliz.”

3 comentários:

  1. Boa tarde! você me conheceu ontem no ônibus... no percurso de volta à casa ou ida para algum lugar (não sei).
    os textos são de sua autoria?

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  2. eu esqueci de deixar meu e-mail...
    esse meu blog faz uma década que eu não o atualizo!
    rs....

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  3. Todos são de minha autoria. Espero que tenha gostado Priscylla!
    Abrigada pela atenção e espero sua visita sempre.
    Também tenho andando meio preguiçosa na escrita, mas sempre que dá, posto algo novo.
    Beijos.

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